Chovia, pouco, mas chovia. Daquela chuva que chega a toda a parte, mesmo se fugirmos dela. Que dia! Parecia que toda a vida se movia de acordo com aquele ritual de silenciosas e frias beliscadelas. Carros, pessoas e água, tal qual uma desordenada sinfonia conduzida por um qualquer deus de humor menos anti-ciclónico.
Não sei porque é que me tinha dado para passear, mas a verdade é que estava a gostar daquele caos molhado, das vozes irritadas, das expressões de revolta de quem está demasiado cansado para fazer a revolução. Num dia normal estaria provavelmente solidária com tudo o que ouvia, mas não naquele dia. Que privilégio o meu, pensava. Poder prestar atenção a tais pormenores e talvez quem sabe aprender alguma coisa com eles, mesmo que fosse só nesse momento.
Tu sim, tu podias. Eras daqueles espíritos sortudos embalados no baloiço da imortalidade, cuja condição única é estares preso a uma liberdade perpétua à qual sucumbes a cada momento. Já nem me lembro quando e como te conheci, ou pelo menos te pude voltar a reconhecer, e também não sei como é que te encontrei precisamente nesse dia. A verdade é que esqueci todas as vidas que corriam a meu lado, mas também para que interessavam elas, se apenas num olhar teu parecem estar todas as respostas.
E eu perguntei. Perguntei os comos, os porquês, e tu apenas me deste os sins e os nãos, que soavam a premissas de um axioma atirado ao lixo, porque a simplicidade não é bem vinda na Terra das Grandes Ideias. E a ti? Também te atiraram ao lixo? Guardaste a esperança na casa do acaso e enterraste-a bem fundo na cova do esquecimento, por isso dás-te ao luxo de olhar para a vida, navegando confortavelmente no mar da indiferença.
Tens um mundo só teu. Já percebeste que neste está tudo mal e isso não te incomoda. Se és livre lá, não sei, pelo menos aqui és. Eu acho que és. Obrigado por me deixares assistir por momentos a esse jogo entre a vida e a eternidade, mesmo que o meu bilhete tenha o carimbo da ingenuidade dos fracos.
Desapareceste, viraste a esquina. Voltei para trás. Tinha deixado de chover e o Sol espreitava, dando por terminado o anterior concerto de baixas pressões. Espreitava o Sol e espreitava a dúvida... Tu existes, sei que existes, a esquina é que não, sei que não.