quinta-feira, maio 26, 2005

Cinco sentidos

A ouvir:
Concerto para piano e orquestra Op. 16 de Edvard Grieg

A ver:
Desperate Housewives

A saborear:
O primeiro gelado do ano

A cheirar:
A brisa de calor e sal com que nos começa a brindar a nossa recortada e longa costa

A tocar:
As cabeças dos “sempre” cravos de Abril

Mais Alto


Mais alto, sim! Mais alto, mais além
Do sonho, onde morar a dor da vida
Até sair de mim! Ser a Perdida,
A que se não encontra! Aquela a quem

O mundo não conhece por Alguém!
Ser orgulho, ser águia na subida,
Até chegar a ser, entontecida,
Aquela que sonhou o meu desdém!

Mais alto, sim! Mais alto! A Intangível!
Turris Eburnea erguida nos espaços,
À rutilante luz dum impossível!

Mais alto, sim! Mais alto! Onde couber
O mal da vida dentro dos meus braços,
Dos meus divinos braços de Mulher!

Florbela Espanca (1894-1930)

quarta-feira, maio 11, 2005

Como é Habitual

Salto da cama
Entre o sonho e o sobressalto
Diligente largo o pijama
E mais um dia começa neste quarto

Um pouco de leite e pão
Ou talvez algum cereal
Pequena pausa para então
Tomar o banho matinal

A porta bem fechada
Já depois de deixar
Acarinhada e acomodada
A gata e a comida para se deleitar

Mais uma longa espera
Na paragem feita castigo
Seguida da viagem bera
Para chegar ao triste destino

Horas e segundos em desconfortável posição
Sentada atrás de incontáveis mesas
Rodeada por uma barulhenta multidão
Que vive no aborrecido mundo das certezas

Ai mas quem é que se lembrou de dizer
Que o mundo somos nós que o fazemos
Se tudo o que vejo em volta
É a vontade de poucos
Embrulhada pelo desespero

Regresso de mais um dia
E cansada entro em casa
Ligo a caixinha hipnótica
Para saber o que se passa

Meros factos empilhados
Por ordem de alguém aleatórios
Entram nesta intimidade
Sem os convites necessários

E nesta ilusão de pertença
Com que recebo o meu amor
Os dois vamos com o sorriso óbvio
De quem nem acredita na dor

Ai quem me dera poder achar
Que a vida é coisa simples
Estar como quem escolheu
Acreditar no normal
Talvez seja natural
Irreversivelmente banal
Como é habitual

Uma pergunta

Existirá maior fantasia que a ânsia do escritor?

Chovia

Chovia, pouco, mas chovia. Daquela chuva que chega a toda a parte, mesmo se fugirmos dela. Que dia! Parecia que toda a vida se movia de acordo com aquele ritual de silenciosas e frias beliscadelas. Carros, pessoas e água, tal qual uma desordenada sinfonia conduzida por um qualquer deus de humor menos anti-ciclónico.
Não sei porque é que me tinha dado para passear, mas a verdade é que estava a gostar daquele caos molhado, das vozes irritadas, das expressões de revolta de quem está demasiado cansado para fazer a revolução. Num dia normal estaria provavelmente solidária com tudo o que ouvia, mas não naquele dia. Que privilégio o meu, pensava. Poder prestar atenção a tais pormenores e talvez quem sabe aprender alguma coisa com eles, mesmo que fosse só nesse momento.
Tu sim, tu podias. Eras daqueles espíritos sortudos embalados no baloiço da imortalidade, cuja condição única é estares preso a uma liberdade perpétua à qual sucumbes a cada momento. Já nem me lembro quando e como te conheci, ou pelo menos te pude voltar a reconhecer, e também não sei como é que te encontrei precisamente nesse dia. A verdade é que esqueci todas as vidas que corriam a meu lado, mas também para que interessavam elas, se apenas num olhar teu parecem estar todas as respostas.
E eu perguntei. Perguntei os comos, os porquês, e tu apenas me deste os sins e os nãos, que soavam a premissas de um axioma atirado ao lixo, porque a simplicidade não é bem vinda na Terra das Grandes Ideias. E a ti? Também te atiraram ao lixo? Guardaste a esperança na casa do acaso e enterraste-a bem fundo na cova do esquecimento, por isso dás-te ao luxo de olhar para a vida, navegando confortavelmente no mar da indiferença.
Tens um mundo só teu. Já percebeste que neste está tudo mal e isso não te incomoda. Se és livre lá, não sei, pelo menos aqui és. Eu acho que és. Obrigado por me deixares assistir por momentos a esse jogo entre a vida e a eternidade, mesmo que o meu bilhete tenha o carimbo da ingenuidade dos fracos.
Desapareceste, viraste a esquina. Voltei para trás. Tinha deixado de chover e o Sol espreitava, dando por terminado o anterior concerto de baixas pressões. Espreitava o Sol e espreitava a dúvida... Tu existes, sei que existes, a esquina é que não, sei que não.

E tenho dito I

E tenho dito I

“Quero viver num mundo sem excomungados. Não excomungarei ninguém(...) Quero viver num mundo em que os seres sejam simplesmente humanos, sem mais títulos além desse, sem trazerem na cabeça uma regra, uma palavra rígida, um rótulo. (...) Quero que a grande maioria, a única maioria, todos, possam falar, ler, ouvir, florescer. Nunca compreendi a luta senão como um meio para acabar com ela. Nunca aceitei o rigor senão como meio para deixar de existir o rigor. Tomei um caminho porque creio que esse caminho nos leva, a todos, a essa amabilidade duradoura. Luto pela bondade ubíqua, extensa, inexaurível (...) Neste momento crítico, neste sobressalto de agonia, sabemos que entrará a luz definitiva pelos olhos entreabertos. Entender-nos-emos todos. Progrediremos juntos. E esta esperança é irrevogável.”

Pablo Neruda, Confesso que Vivi

Here comes the flood

Here comes the flood
Rivers of mud, baby
Here comes the quake
Evacuate while you still can
Here comes the fire
Our funeral pyre, baby
Here comes the flood
Here comes the blood bath

Here comes the fly
Fifty foot high, baby
Here comes the war
More blood and gore
Than you can stand
Here comes the race
From outer space, baby
It’s all over
We’re all gonna die

If the Good Lord intended me to live in LA, he’d have given me a machine gun
Still, here I am, just another worried little other citizen of this modren-day Pompei
Waiting for the melt-down, the show-down, the great American close-down
When fault-line that runs through society’s fabric finally snaps and the whole damn thing starts unravelling
Why watch the sports channel when you can watch CNN?
Ladies and Gentlemen, the greatest race in history, the race to end all races, in fact the race to en history
In lane one-the San Andreas Fault, in lane two-Global Recession, in three-El Niño, in four-Chemical War, lane five-Inter-Racial Conflict, lane six-Auto Immune Deficiency Syndrome
On your marks.
Get set.
Wait for it…
GO!

Here comes the flood
Rivers of blood, baby
Here comes the bomb
It won’t be long
‘til we’re all gone
Here comes the sun
Run baby run, baby
If you believe all that you read
You know the end is nigh
We’re gonna die
Neil Hannon in Fin de Siécle

Na cidade dos amarelos

À espera. Mais uma vez à espera. Sentada entre a octogenária e a criança de escola, com nada além de uma música que eventualmente se há de repetir, dou por mim a perder tempo da minha curta, mas turbulenta vida, a aguardar um dos amarelinhos da Carris que me poderá, quiçá, levar até casa. Não sei que fizemos nós, habitantes desta cidadela de três milhões, para merecermos este tratamento apenas porque, por umas e outras razões, não nos deslocamos de pópó na nossa actividade diária.
E nada acaba quando, desviando-se dos buracos da calçada, nos aparece o malfadado. Há sempre o velhinho que resolve atirar toda a sua fúria em cima do condutor ou o passageiro que subitamente se torna num iluminado orador perante uma plateia que não sabe se lhe há-de bater ou rir à gargalhada quando ele finalmente remata com um: Isto no tempo do Salazar é que era bom! Aparentemente andam por este país potenciais estadistas anónimos perdidos um pouco por todo o lado. Já que fazem tantos programas para encontrar famosos de meia tigela, porque não fazerem castings para políticos a sério? Um dia a depender da Carris dá de certeza razões tão boas como quaisquer outras para querer mudar alguma coisa neste nosso cantinho.
Enfim... Olhando à volta, até nem consigo conter um pequeno sentimento de pena por todos aqueles que sós atrás de seus volantes, se alinham quais soldados de um longo e repetitivo regimento enquanto aguardam a sua vez de cruzarem as duras batalhas lá para os lados da Ponte 25 de Abril, Segunda-Circular ou IC 19. Ao menos no meu gigante amarelo, enfiada entre o sovaco ou o saco do mini-preço ainda há tempo para ir lendo um livrinho ou observar discretamente os improvisados companheiros de viagem.
O problema está quando no fim de semana nos apetece ir dar um voltinha para fora da cidade e para isso dependemos dos dois autocarros de cada carreira que circulam no centro, isto supondo que as alterações de percurso que se dão nesses tão ansiados dias, não impossibilitem até que os ditos cheguem ao nosso bairro. Tudo para depois chegarmos a um dos vários centros de transporte existentes e constatarmos que o próximo transporte para o nosso destino parte daí a uma hora. E como, voltar para casa está fora de questão porque os únicos dois autocarros que circulam devem estar do outro lado da cidade, só nos resta procurar um café ou um jardim, se estiver bom tempo, para nos sentarmos e recorrermos à nossa melhor amiga, a bica. Mas, tal também pode ser tarefa difícil, tendo em conta que os ditos terminais estão geralmente localizados em locais isolados, além de haver a grande possibilidade de levarmos com várias placas de Descanso do pessoal no nariz.
Tenho pena que não nos sirvam melhor os donos dos amarelinhos, tenho muita pena. Mas enfim, por agora e por muito tempo, vou depender deles por isso deixa-me lá furar entre a multidão para ver se consigo sair que esta é a minha paragem.